A extrema direita contra Picasso
Livro reconstrói os ataques de 1971 a livrarias e galerias de Madri e Barcelona que comemoravam os 90 anos do pintor espanhol
Barcelona
Fachada da livraria Antonio Machado, em Madri, após o atentado de 29 de outubro de 1971. AGENCIA EFE
No final de 1971, uma dúzia de galerias e livrarias que expunham obras e retratos de Pablo Picasso em homenagem ao seu 90º aniversário foi alvo de ataques. Madri e Barcelona sofreram uma série de ações planejadas pela ultradireita espanhola contra a visibilidade do pintor: desde atos de pequena intensidade, como a quebra de vitrines e o lançamento de tinta vermelha nas livrarias Antonio Machado, Visor e Cultart, em Madri, até a destruição completa das gravuras da Suíte Vollard expostas na galeria Theo, também na capital espanhola, e o ataque com coquetéis molotov que destruíram a galeria Taller de Picasso e a livraria Cinc d'Oros, ambas em Barcelona. O livro Picasso em el Punto de Mira (editora Memoria Artium, em espanhol), escrito pela pesquisadora Nadia Hernández, recupera a memória desses acontecimentos e os analisa no contexto da onda de violência cultural que atingiu várias cidades espanholas desde então. “Os ataques começaram em outubro e novembro de 1971 contra a figura de Picasso. Depois, mudaram o foco e os alvos, até 1975; foram livrarias e editoras em uma onda anticultural que afetou mais de uma centena de estabelecimentos”, destaca essa historiadora da arte especializada em colecionismo.
Desde que aderiu ao Partido Comunista, em 1944, Picasso passou a ser visto pelo regime franquista da Espanha como um agente de propaganda do comunismo internacional, e sua obra mais célebre, Guernica, a imagem da luta contra o franquismo, foi alvo do rechaço das autoridades. “A partir dos anos 1950, se começa a reconhecer o artista, com a ideia de projetar uma imagem de abertura ao exterior, mas não o homem e suas ideias”, acrescenta Hernández. Algo que se prolongou até os anos setenta, momento em que “a questão se radicalizou devido a acontecimentos políticos que acabaram ativando a violência contra Picasso”, explica a historiadora, que consultou para seu livro a imprensa oficial e a clandestina – documentação inédita como o arquivo pessoal de Josep Maria de Porcioles, prefeito de Barcelona entre 1957 a 1973, depositada no Arquivo Nacional da Catalunha – e entrevistou personagens tão diferentes como o ultradireitista Blas Piñar e Maya Picasso, filha do pintor.
O livro repassa a criação do Museu Picasso de Barcelona, inaugurado em 1963, uma operação complexa em que a cidade acabou sendo um vínculo entre o regime e o pintor. "Na documentação de Porcioles aparece como ele agiu de intermediário entre Picasso e o ministério de Fraga Iribarne [Informação e Turismo], e como conseguiu inaugurar o museu e se esforçou para ampliá-lo e conseguir mais doações do artista". Como a de 1970, de mais de 900 obras da juventude, entre elas a série completa chamada Las Meninas, "algo que aumentou sua popularidade e sua visibilidade".
“Em seu 90º aniversário, ficou em evidência o insólito de que fosse homenageado em toda a Europa, e que na Espanha fosse como se não existisse. Por isso, o Governo espanhol, com Manuel Fraga Iribarne à frente, elaborou uma estratégia de recuperação para dar uma imagem positiva fora do país”, segundo a especialista. Mas a extrema direitareagiu, sobretudo pela ação do Blas Piñar – criador, em 1966, da Fuerza Nueva Editorial S.A., e em 1976 do partido radical Força Nova –, que não suportava Picasso desde que caiu nas suas mãos uma edição alemã de Sonho e Mentira de Franco, as pequenas imagens que o pintor criou em 1937 para acompanhar sua Guernica no pavilhão espanhol de Paris. Em uma de suas 18 ilustrações, o ditador aparece com um pênis enorme copulando com uma porca. “Os ataques partem de um erro. Quando Piñar fica sabendo que as gravuras da Suíte Vollard estavam expostas na galeria Theo, acha que são os mesmos desenhos de Sonho e Mentira de Franco. Escutei todos os seus discursos e quase sempre ataca Picasso. E cada vez se sucede um ataque a uma livraria ou galeria que o homenageia”, argumenta Hernández. No atentado à Theo foram destruídas as 24 obras expostas. Os autores do ataque entraram, amordaçaram a secretária e um estudante que estava na sala, quebraram as vitrines e jogaram ácido e tinta. Piñar foi acusado de ser o instigador.
O ultradireitista insistiu no erro a vida toda. “Em suas memórias, escritas 40 anos depois, dedica um capítulo a falar do assunto e diz, outra vez, que as obras expostas eram as das charges e justifica suas ações dizendo que eram cópias.”
Em Barcelona, em 21 de novembro, vários coquetéis molotov destroem a sala Taller de Picasso, e dois dias depois a livraria Cinc d'Oros é atacada também. O Museu Picasso e a sala Gaspar se salvaram depois que os donos da Theo os avisaram de Madri. “A Prefeitura reforçou a vigilância, postando a Guarda Civil na porta”, conta Hernández, que recorda que Joan Ainaud de Lasarte, responsável pelos museus da cidade na época, pediu “que cada visitante seja um vigilante”. Para Hernández, não há dúvida da conexão entre todos estes atos violentos: “Em outubro de 1971 houve um encontro dos diferentes grupos que participaram deles em uma casa rústica de Olot (Catalunha), onde foram treinados por membros da ultradireita italiana.”
A origem dessa investigação está numa coleção de quase uma centena de obras criadas sobre panos de mesa de algodão. “Em 1972, os donos do Taller de Picasso enviaram, depois do atentado, quase uma centena de envelopes com essas peças de tecido a artistas e criadores para que fizessem uma dedicatória de desagravo a Picasso para uma exposição em Vallauris, onde o pintor viveu.” E todo mundo respondeu enviando autênticas obras de arte nesses tecidos de 40 por 60 centímetros, com renda de 5 centímetros feita a mão.
“Devolveram por correio as toalhas de mesa dobradas, burlando a censura da época. O conjunto é um corte transversal do panorama pictórico de 1971.” Entre os artistas estavam Alexander Calder, Wilfredo Lam, Benjamim Palencia, Antoni Clavé, Josep Maria Subirachs, Manolo Millares, Joan-Josep Tharrats, Antoni Tàpies, Modest Cuixart, Equipe Crónica, Joan Miró, Arranz-Bravo, Joan Pon e Juan Genovés. Mas também personalidades não ligadas às artes plásticas, como o músico Pau Casals, o romancista Camilo José Cela, o ator Fernando Fernán Gómez e o poeta Rafael Alberti, que pintou seis, entre eles, Una Paloma para Picasso, que seu amigo malaguenho não chegou a ver, porque morreu em 1973. “Era um momento de efervescência, menos mercantilista e mais solidário. Agora seria diferente”, provoca a autora.
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