Por que Susan Sontag deixou que o ex-marido roubasse parte de seu trabalho e obra?
Nova biografia confirma que foi ela quem escreveu, ao menos em grande parte, uma das principais obras do sociólogo Philip Rieff
Sontag em 1972. GETTY
Tudo o que se escreveu sobre Susan Sontag –ou sobre quem se supõe que foi Susan Sontag– parece ter relegado a um segundo plano seus próprios escritos. Desde o princípio, sua personalidade e aparência foram submetidas a um debate igual ou maior que sua obra. E o que é pior: em muitas tentativas de desqualificá-la a estratégia se baseou na combinação de ambos os aspectos. “Se houvesse justiça neste mundo, Susan Sontag seria feia, ou pelo menos pouco atraente”, comentou uma crítica no The Washington Post em 1967. “Nenhuma mulher tão atraente tem direito a tanto cérebro”. Essa mesma fixação pelo ícone Sontag foi transferida depois de sua morte, em 2004, às descrições que foram feitas dela. No entanto, entre tanto barulho passou quase despercebido um dos supostos episódios mais dolorosos da vida de Sontag: foi ela quem escreveu, ao menos em grande parte, Freud: The Mind of The Moralist (Freud: A Mente do Moralista), uma das principais obras de seu ex-marido, o sociólogo Philip Rieff. Assim parece se confirmar em uma nova biografia de Sontag escrita por Benjamin Moser –que será publicada em setembro com o título Sontag Her Life and Work (Harper Collins)– que a escritora renunciou à autoria do livro por um acordo de divórcio que se viu obrigada a assinar para poder ficar com a guarda do filho que tiveram.
A história remonta a 1949. Sontag tinha apenas 17 anos quando recebeu uma bolsa para estudar na prestigiosa Universidade de Chicago, onde começava a se destacar o professor Philip Rieff, uma jovem estrela interessada em Sigmund Freud e nas novas teorias sociológicas da cultura. O que hoje podemos ler é que um dia, ao terminar a aula, Rieff se aproximou da moça e, atraído tanto por sua timidez quanto por sua beleza, convidou-a para sair. Desfrutaram de uma noitada juntos e, no dia seguinte, ele propôs casamento durante o café da manhã: dez dias depois estavam casados e, alguns meses depois, Sontag daria à luz ao primeiro filho, David Rieff. Com 19 anos, Susan Sontag parecia já ter cumprido a maioria das exigências da vida adulta, e a verdade é que ela nunca se arrependeu dessas decisões. Para ela foram uma forma de mostrar que não era, nem queria voltar a ser, uma garota.
Assim como conta o livro Afiadas, as mulheres que fizeram da opinião uma arte, de Michelle Dean, nessa fase o casal viveu em uma espécie de delírio acadêmico. “Sontag nunca disse grande coisa sobre a atração física entre os dois, mas o vínculo intelectual foi transformador”. Sem que possamos julgar se o casamento com Rieff foi uma decisão prática ou motivada pela paixão –a pequena renda de Sontag aponta para a primeira possibilidade–, a verdade é que ela sempre admitiu que existia uma enorme cumplicidade entre ambos. Em uma história autobiográfica, ela descreve a euforia e a felicidade que sentiu durante o casamento: “Passamos sete anos conversando”, e também confirmou em seus cadernos: “Me caso com Philip com plena consciência e por medo da minha tendência à autodestruição”.
Foi também nessa época, como Moser agora aponta, que escreveram a quatro mãos Freud: The Mind of The Moralist. Se até agora a maioria de seus biógrafos, amigos e conhecidos reconhecia que Sontag deve ter influenciado e revisado a escrita do livro, o que se denuncia agora é que a história foi contada com os papéis invertidos: a maioria das ideias era de Sontag, enquanto Rieff serviu unicamente como apoio. Para provar isso, Benjamin Moser se baseou em diferentes declarações de pessoas próximas do casal, como uma amiga de Sontag –“Susan passava todas as tardes reescrevendo tudo do zero”– ou naquelas de uma carta que ela escreveu à mãe –“Estou trabalhando cerca de 10 horas por dia neste livro, estou na terceira parte”. Mas o que é mais revelador são as ações do próprio Philip Rieff, que deve ter sido incapaz de assumir que sua mulher, mais inteligente e aguda do que ele, queria o divórcio para desenvolver sua carreira sozinha. Em uma longa entrevista ao jornalista Jonathan Cott para a Rolling Stone –traduzida e publicada recentemente na Espanha pela editora Alpha Decay–, Sontag explicou as razões dessa decisão: “É muito duro ter várias vidas e ter um marido, ou ao menos esse tipo de marido que eu tive, que foi incrivelmente intenso. Estávamos juntos o tempo todo. E é impossível viver com alguém vinte e quatro horas por dia, anos e anos, sem se separar nunca, e ter a liberdade para crescer, mudar e voar para Hong Kong se tiver vontade. É por isso que digo que em algum ponto do caminho é preciso escolher entre a Vida e o Projeto”. O que parecia um enlace entre duas almas gêmeas tornou-se uma prisão para ela.
Em uma biografia anterior escrita por Daniel Schreiber se conta que entre os acordos do divórcio (que ele nunca quis) foi estipulado que Rieff seria sempre designado como o único autor de Freud: The Mind of The Moralist. A contribuição de Sontag para o livro ficou reduzida a um “agradecimento especial a Susan Rieff” no prefácio da primeira edição. Tratava-se de um detalhe envenenado de paternalismo, já que Susan nunca quis trocar seu sobrenome pelo do marido.
O confronto não ficou por aqui. Apesar de que no mesmo acordo tenha ficado estabelecido que ela cuidaria de David sem receber, a pedido da própria Sontag, nenhuma pensão do ex-marido, Rieff tentou obter a guarda da criança por meio de uma ação judicial. A alegação argumentava que Sontag, devido às suas relações lésbicas, não poderia continuar exercendo como mãe. Ele nunca alcançou seu objetivo, mas o processo a marcou pelo resto da vida. Por seu lado, Rieff precisou de 40 anos para mostrar seu arrependimento em uma carta: “Susan, amor da minha vida, mãe do meu filho. Coautora deste livro: perdoe-me. Por favor. Philip”.
Numa tentativa de reduzir os danos, os artigos que abordam a obra e a biografia de Philip Rieff se esforçam em salientar que, mais tarde, Susan Sontag se tornou uma figura muito mais reconhecida. E é verdade. Basta pisar em uma livraria para entender que Sontag –celebrada até mesmo pelas irmãs Kardashian, Katy Perry e Lady Gaga no Met Gala– é hoje uma escritora muito mais evocada do que seu ex-marido. No entanto, se descermos à sala de máquinas da cultura acadêmica da última metade do século XX, descobriremos que Philip Rieff é considerado para muitos o melhor sociólogo do século passado e que sua notoriedade se fundamenta principalmente em duas obras: Freud: The Mind of The Moralist e O Triunfo da Terapêutica –que são, de certo modo, o mesmo livro escrito de perspectivas diferentes.
“Para o diagnóstico cultural de categoria média com um toque de teoria social, se lia Foucault ou Bauman”, explica Charles Turner. “Rieff morreu quase como um homem esquecido”. Mas não é inteiramente verdade: embora tenha passado quase 30 anos sem publicar, sua interpretação da obra de Freud marcou um antes e um depois, especialmente porque seu diagnóstico sobre o nascimento da “sociedade terapêutica” está na origem de quase todas as teorias contemporâneas que assumem que o capitalismo tardio se aliou ao discurso da psicologia e da saúde para conquistar a alma humana. Rieff é citado de modo recorrente como uma das fontes primárias da cultura da autoajuda, da ideologia do bem-estar obrigatório e das novas indústrias da felicidade. Até hoje sua interpretação de Freud –e das consequências culturais de seu pensamento– é uma referência para as novas correntes de conservadores norte-americanos. Em outras palavras: embora o nome de Philip Rieff não tenha passado à cultura mainstream para além dos EUA, sua obra teve uma enorme influência no pensamento contemporâneo.
A pergunta, então, é o que teria acontecido se Sontag figurasse como autora desse livro. Provavelmente nada, além de que seu nome estaria nas bibliografias de muitos outros trabalhos acadêmicos. No entanto, o que esta história confirma, mais uma vez, são os enormes obstáculos que uma mulher tinha de superar, ainda mais se fosse mãe, para ter sucesso; e que quando o conseguia tinha de enfrentar as vozes que a condenavam por se desviar do caminho. Susan Sontag foi uma das mentes mais esplêndidas do século XX, já o sabíamos, mas que teve de renunciar às suas ideias para poder cuidar do filho e demonstrar depois que ser lésbica não lhe tirava o direito à guarda, pode explicar por que sempre é lembrada como uma mulher narcisista –“poucas autoras provocavam tanta admiração por seu trabalho, poucas tanta decepção e amargura na cena privada”. Deveríamos pensar agora quanto deve ser exaustivo que sua mente explique e calibre a realidade de uma forma extraordinária e, ademais, ter de demonstrar isso diariamente.
Um exemplo que costuma ser usado para evidenciar esse forte caráter é a escolha que fez meses antes de morrer. Uma vez diagnosticada com leucemia, uma doença que provavelmente se originou da radioterapia à qual teve de se submeter depois do seu primeiro câncer, duas opções se lhe ofereciam: receber um tratamento que a fizesse passar os últimos meses de vida de forma confortável ou fazer um transplante de medula óssea e esgotar as poucas possibilidades de continuar viva. Apesar da dificuldade do tratamento, da tortura física que se disse que sofreria e das poucas perspectivas de sucesso, Sontag, entre a morte e a dor, preferiu a dor. Mas é possível que não tenha sido tanto pela importância que dava a si mesma, como se disse tantas vezes depois, mas porque a morte significava deixar de escrever, deixar de pensar.
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