Drica: Defender o território para as gerações futuras significa resistir
A ativista brasileira é responsável por uma associação de seis comunidades de afrodescendentes que enfrenta a destruição da floresta amazônica brasileira
Mãe Domingas (Brasil)
FOTOS E VÍDEO: PABLO ALBARENGA
A chegada do barco ao quilombo Mãe Domingas, que só pode ser acessado com a obtenção de uma permissão especial do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade por estar dentro da Reserva Biológica do Rio Trombetas, coincide com o final de uma consulta em assembleia.
A votação vem depois de ter sido discutida uma proposta de uma empresa madeireira para explorar o território em troca de uma renda, o que parece fabuloso. Então, alguém comunica o resultado da votação para os recém-chegados: 15 a favor da proposta dos madeireiros, 100 contra. Embora seja uma representação modesta de todas as seis comunidades (Tapagem, Mãe Cué, Abuí, Sagrado Coração de Jesus, Santo Antônio e Paraná do Abuí, que compõem o território quilombola englobado na associação Mãe Domingas, coordenada por Drica, uma jovem líder comunitária de 29 anos), este resultado é significativo.
Significa a vitória das teses que Drica defende. Mãe Domingas, o território quilombola onde vive Drica, está entre os mais pobres dos oito que existem na região do rio Trombetas, um afluente da margem esquerda do rio Amazonas, no Pará.
A vida transcorre aqui em unidades familiares modestas. Estas agrupam duas ou três casas, muitas delas com paredes de madeira e telhados de folha de palmeira, e fácil acesso ao rio, que é o canal de comunicação fundamental, se não único. Não há energia, exceto a de um gerador que os habitantes ligam (quando há combustível), no final da tarde; e a água vem de poços.
Os quilombos são formados por várias comunidades organizadas em diferentes territórios, e Drica, que foi estudar em Manaus, mas retornou ao Trombetas para trabalhar como professora na escola do quilombo, foi recentemente escolhida para representar a associação do território, formada por seis comunidades para defender seus interesses há 18 anos.
Pela primeira vez, uma mulher detém essa posição. Isso gera expectativas, mas também relutância, em uma sociedade tão tradicional. "Machismo sempre esteve presente aqui, desde o começo. Mas com a minha eleição como coordenadora pela primeira vez, uma barreira foi quebrada. Espero que isso ajude outras mulheres a fazerem o mesmo", diz ela com orgulho.
Mas a origem dessas comunidades afrodescendentes, que existiam em diferentes partes do continente americano, mas que no Brasil adquiriram uma dimensão muito relevante, é fundamental para entender sua condição atual.
O Brasil adiou ao máximo a abolição da escravidão. Tanto que foi o único país onde a venda de escravos de origem africana ainda era legal no final do século XIX. Embora a dimensão continental desse país e a imensidão fértil da sua bacia amazônica oferecessem, às vezes, a oportunidade de fugir, as comunidades de negros fugitivos foram fortemente reprimidas.
Escapar, então, significava ir longe, muito longe, para lugares remotos, onde seria difícil para os "senhores" de escravos encontrá-los, embora não tão longe a ponto de abrir mão de contato para propósitos de troca que assegurariam elementos indispensáveis para sua sobrevivência.
Escondidos e dispersos (evitar a concentração acabou por ser uma estratégia defensiva eficaz), eles aprenderam a sobreviver em núcleos muito pequenos e com quase nada.
Assediados por expedições punitivas periódicas que muitas vezes não conseguiam capturá-los, mas devastavam seus assentamentos modestos, eles conseguiram sobreviver graças a sistemas eficazes de vigilância ao longo do rio e sua capacidade de desaparecer na floresta tropical sem deixar rastros para seus perseguidores.
Enfrentar as condições extremas da floresta como esconderijo, em todo caso, compensava a humilhação, a crueldade e a desumanização que a escravização acarretava. Arrancados da África com violência sem precedentes, muitos daqueles que sobreviveram perderam toda a referência que tinham das suas comunidades de origem. Eles também não tinham o conhecimento ancestral dos índios nativos para viver na floresta.
Mesmo assim, chegaram a formar comunidades de vários milhares de indivíduos, alguns dos quais sobrevivem até hoje e viram (finalmente!) reconhecidos seus direitos sobre a propriedade da terra que habitam há gerações.
Como a história das demarcações indígenas, a titulação de terras quilombolas é objeto de forte especulação e tem sido dificultada por aqueles que aspiram obter abundantes benefícios extrativistas nesses territórios, ricos em recursos naturais.
Muitos desses processos de titulação ainda estão abertos, mas o novo governo de Jair Bolsonaro decidiu acabar com a concessão de terras. Assim, para algumas comunidades dos quilombos, como a de Drica, que luta há décadas pelo reconhecimento de seus direitos de propriedade adquiridos, a luta continua.
Os quilombos do Trombetas existem pelo menos desde fins do século XVII, quando o cultivo de cacau e a pecuária no baixo Tapajós estimulou a compra de escravos, provenientes do mercado de traficantes da costa brasileira. Segundo a Fundação Cultural Palmares, existem 3.524 grupos em todo o Brasil. Destes, apenas 154 foram titulados - o que é a fase final do processo de reconhecimento e proteção dos quilombolas no Brasil. Segundo dados da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), outros 1.700 grupos, entre os quais está a comunidade de Drica, aguardam a conclusão de estudos antropológicos ou a emissão de prêmios técnicos para obter um título.
No papel, isso dá aos seus habitantes, os quilombolas, uma grande riqueza, mas também envolve ameaças importantes e é nesse âmbito que a luta de jovens como a Drica é fundamental.
As ameaças que açoitam esses territórios são muito pesadas. Desde a década de 70, a MRN - Mineração Rio do Norte, que pertence a um consórcio em que participam os gigantes BNP, ALCOA e outros, incluindo a Vale S.A. (responsável pelos desastres de Mariana e Brumadinho), inaugurou uma mina monumental de bauxita, base para a fabricação de alumínio. Segundo seus próprios dados, a mina extrai 18 milhões de toneladas por ano.
Drica diz que essa é uma mina opaca cujas auditorias não foram publicadas, e teme que a barragem com os resíduos do processo de decantação possa quebrar e acabar com a vida no rio. De fato, denunciam, há vazamentos que afetam a água de quem mora perto, fazendo mal a quem bebe e provocando irritações na pele.
Mas em seus 40 anos de existência, a mina oferece oportunidades de trabalho aqui e ali, e distribui alguns serviços à comunidade para ganhar seu apoio, especialmente depois da titulação de algumas das terras em favor dos quilombolas, para contemplar a expansão de sua atividade extrativa. A realidade é que eles investem minimamente em saúde e educação, por exemplo, nas comunidades quilombolas, talvez simplesmente a parte que é obrigatória segundo a legislação ambiental, mas são migalhas quando comparadas aos benefícios que uma mina desse porte traz para seus acionistas.
Mas a percepção dominante é de que a mina existe na região desde sempre: quatro décadas parecem um tempo incontável para essa comunidade jovem, que também está experimentando uma verdadeira explosão demográfica. Nos quilombos, crianças aparecem em toda parte e estão lá para constantemente lembrar Drica da responsabilidade de preservar o território.
"Nossa luta, como a dos nossos avós e bisavós, é defender essa terra para que essas novas gerações possam recebê-la do mesmo jeito que nós a recebemos", diz Drica, que agora é responsável não só por seu trabalho como professora de cursos infantis na escola, mas também pela liderança da associação comunitária.
Ensinar as crianças a respeitar o território é a sua motivação principal, e imaginar um futuro em que essas crianças saibam reconhecer e preservar os tesouros que esta terra contém e ter consciência das ameaças que pairam sobre ela para que, quando chegue o dia, possam defendê-la da melhor forma.
Duas organizações cuja missão é preservar a floresta dão oficinas às comunidades sobre exploração sustentável da madeira, mas os habitantes desconfiam
Mas, embora o quilombo pareça assumir a mina como uma fatalidade, o mesmo não acontece com a ameaça das empresas madeireiras.
Existem aqueles que propõem alternativas econômicas à chegada de uma madeireira estrangeira que, com um modelo de exploração predatória, em poucos anos poderá distribuir uma renda que parece fabulosa, mas não é. Muitos acreditam que, uma vez que acabem com as preciosas árvores do lugar, a madeireira começará a destruir o próximo pedaço de floresta, deixando um rastro de superexploração, desestruturação social e, por fim, tristeza, corrupção e morte.
Drica, e muitos como ela, não querem sequer abordar argumentos que falam da qualquer exploração madeireira. Eles tomaram uma decisão na assembleia e agora só querem administrá-la.
A desconfiança acumulada por esses afrodescendentes que fugiram da exploração mais desumana faz com que suspeitem dos homens barbados. Entretanto, o drama da privação e da pobreza que enfrentam os obriga a pensar, mais cedo ou mais tarde, em algum modelo de geração de renda, especialmente quando essas centenas de crianças começarem a atingir a idade adulta, formar famílias e tentar "progredir". Até hoje, as condições no quilombo já são muito difíceis, e tomar a decisão errada pode ser catastrófico.
Eleita no final do ano passado, Drica está no começo do seu mandato de dois anos e terá que aprender a lidar com os vários fatores de risco que ameaçam seu território.
A consciência de que eles estão assentados em uma terra rica, e que agora finalmente pertence a eles, é para eles uma motivação para mantê-la intacta.
"Mas a maior ameaça ao nosso futuro, além das madeireiras ou da mina de bauxita, é a hidrelétrica", diz Drica, que vê isso como o fim dos quilombolas do Trombetas. Essa mega infraestrutura com capacidade planejada de 2.000 MW vem sendo estudada há algum tempo na região de Cachoeira Porteira, vizinha do território da Mãe Domingas, no Alto Trombetas, e mais uma vez ganhou força dentro do marco do projeto de “desenvolvimento” da Amazônia conhecido como Plano Barão do Rio Branco, que promove o Governo de Bolsonaro, como confirmado pelo general Maynard Santa Rosa, um de seus ministros militares.
Drica vê o rio seco e a população realojada em pequenas casas clonadas e estatais, construídas para mudar a população para os arredores de Oriximiná ou Santarém. Não seria a primeira comunidade da região a acabar assim.
Drica vê um aumento da violência, vê consumo de drogas e álcool, vê o desenraizamento, vê tristeza e ruína para o seu povo e, acima de tudo, vê violada a felicidade dos estudantes, o banho matinal no rio, o som da floresta que é a trilha sonora das suas vidas.
Ensinar as crianças pequenas a respeitar o território é a motivação principal de Drica
Drica vê o fim da magia dos botos que mostram seus lombos prateados ou rosados ao entardecer, o fim do deleite de uma manga caída da gigante árvore que preside a felicidade infantil.
Drica é uma mulher corajosa, agora empoderada, mas ela tem uma tarefa muito difícil pela frente. Os riscos que pairam sobre o seu povo, além da mina de bauxita, das madeireiras e do projeto hidrelétrico, são incalculáveis. E acima de tudo, ela entende a prática de indefesa que as políticas de Bolsonaro podem significar.
Às vezes, a dimensão catastrófica que essas ameaças podem significar a domina, a sobrecarrega. Mas há uma determinação em seus olhos, um orgulho antigo e uma rebelião herdada dos avós e bisavós, que fugiram da brutalidade e da escravidão para serem livres.
Drica e seu povo vivem em condições muito duras, mas mostram um orgulho quase desafiador. Mesmo com toda a sua vulnerabilidade, não estão dispostos a deixar nada e ninguém tirar seu território e sua liberdade conquistada. Eles são livres desde a época de um mítico "mocambo", um grande quilombo do século XVIII situado no alto do rio denominado pelos historiadores de "Cidade Maravilha", e do qual eles dizem descender.
Os quilombolas situados no Alto Trombetas são cerca de 10.000, e Drica e seu povo parecem determinados a resistir. Afinal, a sua história é uma história de rebelião e resistência.
Agora, resistir ao racismo e absoluto desprezo, às vezes carregado de ódio, e à carta branca com que contam os construtores, proprietários de terras, madeireiros, garimpeiros e outros depredadores que se sentem protegidos pelo governo Bolsonaro, é um desafio maior. Colossal.
Drica precisará de toda a comunidade, toda a sua força e todo o seu coração para vencer.
Este artigo pertence à série Rainforest Defenders, um projeto da openDemocracy / democraciaAbierta em colaboração com Engajamundo Brasil, com o apoio do Rainforest Journalism Fund do Pulitzer Center.
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