A ciência se aproxima da criação da vida em laboratório
Três cientistas dão um passo essencial para certificar que é possível explicar o surgimento dos seres vivos sem recorrer a forças sobrenaturais
Águas termais no Parque Nacional de Yellowstone, nos EUA. GETTY IMAGES/PETER UNGER
Em nosso planeta há 4.200 religiões, todas elas diferentes e incompatíveis entre si, então todo mundo de alguma forma é ateu. Uma pessoa que creia firmemente em uma religião não engole as outras 4.199. O Corão afirma que Alá criou todos os seres vivos a partir da água. O Deus da Bíblia diz: “Produza a terra seres vivos segundo a sua espécie: animais domésticos, répteis e animais selvagens, segundo a sua espécie”. E, segundo um mito do hinduísmo, o primeiro ser vivente, o deus Brama, brotou de uma flor de lótus. Os cientistas, enquanto isso, acabam de dar outro passo essencial para averiguar como a vida realmente surgiu e para reproduzir este processo em laboratório. “Seria a prova definitiva de que a vida emerge da química e que não é preciso recorrer a nenhuma força sobrenatural”, resume o bioquímico Juli Peretó, da Universidade de Valência (Espanha).
“Acredito que estamos a uns cinco ou dez anos de criar uma protocélula funcional”, diz o químico Matthew Powner, do University College de Londres. Sua equipe está na vanguarda do exército de cientistas que tentam verificar como – a partir de elementos químicos da Terra primitiva, tais quais hidrogênio, carbono e enxofre – a vida surgiu por acaso: estruturas com capacidade de copiar a si mesmas e se autos sustentar. Seu último avanço foi publicado nesta quinta-feira na revista Nature.
Há mais de 60 anos os cientistas tentam fabricar peptídeos, um dos ingredientes fundamentais dos seres vivos. Os peptídeos são cadeias curtas de aminoácidos, uma espécie de versão curta das proteínas. Entretanto, os pesquisadores passaram décadas chocando-se contra um muro: suas sopas artificiais de água e aminoácidos não formavam peptídeos em laboratório. Paradoxalmente, a equipe britânica conseguiu avançar dando um passo atrás.
Os três químicos do University College de Londres – Matthew Powner, Pierre Canavelli e Saidul Islam – demonstraram que os peptídeos puderam surgir nessa Terra primitiva sem necessidade de aminoácidos nem de forças sobrenaturais. A receita seria uma singela sopa de água e aminonitrilas, precursores dos aminoácidos que só precisariam dos ingredientes presentes naquele ambiente anterior à vida, quatro bilhões de anos atrás, como o ácido sulfídrico (formado por hidrogênio e enxofre) e o ferrocianeto (carbono, nitrogênio e ferro). Utilizando uma comparação de Juli Peretó, os cientistas teimavam em escrever a palavra ABC a partir das letras a, b e c, mas isso não funcionava na água. Powner escreveu ABC juntando os precursores de a, os precursores de b e os precursores de c, sem passar pelas letras a, b e c. Formou cadeias de aminoácidos (peptídeos) sem usar aminoácidos.
“Estamos perto de chegar ao fim do princípio: sintetizar as moléculas funcionais da vida. O passo seguinte será integrar estas moléculas em um sistema”, explica Powner, discípulo de John Sutherland, um dos cientistas mais respeitados no campo da origem química da vida. O professor é mais precavido. “Se pensarmos em como as catedrais foram construídas, as pessoas que punham os alicerces morriam muito antes que a majestosa estrutura da catedral fosse visível. Eu estaria orgulhoso de ser dos que puseram os alicerces de uma protocélula”, declarou Sutherland em 2015, numa conversa com o próprio Peretó publicada na revista Mètode.
"Acredito que estamos a uns cinco ou dez anos de criar uma protocélula funcional", diz o químico Matthew Powner
“Não estamos longe, no sentido conceitual, de criar vida em laboratório. A polêmica pode estar no que consideramos que está vivo”, opina Peretó, que não participou do trabalho de Powner. O bioquímico da Universidade de Valência adverte que ainda falta muito caminho até a criação de uma célula a partir de elementos químicos presentes na Terra primitiva. “Outro componente essencial seria a membrana celular, e ainda há poucas propostas sobre como teria se formado”, salienta.
O pesquisador Iñaki Ruiz-Trillo, do Instituto de Biologia Evolutiva de Barcelona, acredita que o novo estudo é “impressionante”. No seu entender, o trabalho “talvez também poderia indicar que certas condições adequadas na Terra já foram capazes de permitir a formação de peptídeos, sem necessidade de pensar em nada que venha de outros lugares”, em referência às hipóteses segundo as quais alguns ingredientes da vida chegaram sobre meteoritos.
“[O estudo de Powner] não resolve a questão de como apareceram os primeiros seres vivos, mas contribui para abrir o caminho para entender o que pode ter ocorrido, que é um dos maiores desafios da biologia e da ciência em geral”, afirma o bioquímico Juan Antonio Aguilera, da Universidade de Granada. “Para alguns, é o maior desafio.”
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